“Por que continuas tentando encher seu vaso com água mesmo sabendo que estás quebrado? Apesar de ficar infinitas vezes tentando encher esse líquido, ele vaza por completo.
Reconheço de sua antiga utilidade, é guardar o que mais mantém você vivo, a água na qual nutre tal argila e depois evapora, precisando então colocar de novo e de novo e de novo e de novo… Por que então não cria outro vaso? descartar aquilo que está registrado em cada toque, sentimentos e emoções na argila. Abandone esse peso de olhar e sentir que seu vaso está sempre quebrado. Pensando bem, por que não achamos outra utilidade? Sei que não é tão fácil desapegar de todo esse esforço e trabalho realizado, uma parte ligada no seu corpo, deixando de lado todo esse passado para criar outro vaso. Acho que não estamos falando exatamente de vaso.” Guilherme Brollo |
“Tem um ponto ou uma música, não sei bem
Que eu gosto muito E ele começa assim: 'Povoada é um nome curioso né A gente sempre fala de povoada em relação a terra A terra é povoada Mas a gente também é terra A gente também é terra que povoa' É engraçado como as coisas são Sou uma menina que cresceu na cidade, longe do cheiro da terra molhada E eu me sentia como um vaso Um vaso vazio Ou pior, um vaso que carregava as águas de outros, as roupas de outros, os grãos dos outros E isso pesava, e como pesava O que é contraditório um vaso vazio ser tão pesado Eu não entendia Só fui entender quando rodei com uma baiana, não com Raquel, minha vó, mas com Maria Quando girei com Giras Mundos Quando cai no colo de seu Zé Quando gritei com Iracema E estremeci o chão com Pedreiras Quando balancei num Mar de Prata Quando me apaixonei como uma cigana, salve Sara Quando curei com café de vô Quando escutei tec tec tec dos pezinhos de um Trovoada Quando bebi água de bolinha com uma flor de Lótus Quando saí do fundo do poço toda cheia de Lodo Quando senti os espinhos da Rosa E o mais importante, quando descobri que temos mais de uma mãe e mais de um pai E que temos muitas e muitas e muitas histórias esperando para serem contadas E sabe o que eu entendi? Que somos um vaso De cerâmica Moldado cuidadosamente para não formar bolhas de ar Secado para não rachar Queimado para não se consumir Forrado de poeira de estrelas Mas que quebra e que em algum momento retorna a ser terra Aceitei que realmente somos um vaso vazio, mas vazio justamente para que eu, apenas eu, guardasse meus objetos lá Que eu, apenas eu, construísse minhas histórias Assim, encontrei finalmente a terra E justamente por ser terra Povoada e que povoa Que não estamos sozinhos”. Laura Franciscato dos Santos |
“Depois da disputa entre Ogum e Nanã, e a criação do homem a partir do barro, Oxumarê, segundo filho de Nanã, se interessou pela forma como o barro se transformou em algo tão complexo.
Oxumarê foi a beira do rio e chamou:
- Mãe, tenho algo a lhe pedir!
Nanã surgiu das águas e foi até a margem
- Diga meu filho, o que desejas? - Perguntou Nanã.
- Mãe, me dê um pouco do barro que deu a Ogum. Quero estudar esse material e todas as suas possíveis formas!
Nanã pareceu relutante e Oxumarê percebendo o semblante de desconfiança da mãe, complementou:
- Mãe fique tranquila, tudo aquilo que me der irá retornar a você! Nada ficará comigo.
Nanã então concordou e cedeu um pedaço de barro a Oxumarê.
Ele então começou a moldar o barro e colocou no fogo para ver o que poderia acontecer, a peça estourou e ele não entendeu. Fez uma nova peça achando que tinha influência a umidade, então aumentou a quantidade de água, mas o barro ficou tão úmido que não conseguia se sustentar. Fez uma nova, amassou bem a barro e desta vez fez as paredes da vasilha grossas. E para sua surpresa não desmanchou e nem estourou. Foi combinando todas as técnicas que vinham à mente para desvendar o por que das peças estourarem ou racharem.
Viu então que é necessário ter cuidado a cada toque, e equilíbrio na quantidade de água para o auxílio da modelagem. Que o barro que ele utiliza para modelar entra em contato direto com os quatro elementos (terra, fogo, água, ar) e que sem eles, nada que construir poderá permanecer intacto ou em uso.
Que se no barro houver ar, a peça irá estourar. Mas se não tiver água ficará difícil de modelar e irá secar rapidamente. E se não queimar, quando entrar em contato com a água, barro de novo irá se tornar. E de uma forma ou outra o barro retornará às origens.
Aprendeu que as ações no barro são gravadas e replicadas posteriormente, pois ele de alguma forma apresenta uma memória sensorial.
Oxumarê então viu semelhanças entre ele e o barro, já que Oxumarê representa o movimento, símbolo da continuidade e da permanência.
E assim é o barro, ele quando úmido apresenta maleabilidade e contínuo movimento para modular, e após ser queimado entrando em contato com o calor do fogo se torna rígido, estático.
Oxumaré rege também a multiplicidade da vida, o transcurso de múltiplos e variados destinos. Assim como os artefatos produzidos pelo barro, que podem ser utilizados de diversas formas.
Oxumaré viu o quanto aquele material era importante, grandioso e imensa utilidade. Lembrou dos recém criados, seres humanos, e pensou porque não repassar o conhecimento que adquiri para que eles possam ter em sua própria história.
Oxumaré foi então à beira do rio novamente, vendo sua mãe descansar aos pés de uma bela árvore nas margens.
- Mãe, tenho novidades!!
Nanã pediu que Oxumaré se aproximasse.
- Diga o que descobriu filho.
Oxumaré contou então, toda a sua trajetória para conseguir entender a construção do material.
- Então mãe, tenho mais um pedido a te fazer. Posso passar aos seres humanos os ensinamentos de como utilizar da forma correta o barro?
Nanã deu um sorriso, e disse a Oxumaré:
- Não é necessário, eles precisam ter a mesma experiência que você teve, precisam entrar em contato com o barro e se conectar de forma sagrada. Pois ele é a terra, regente de todas as energias. Não se preocupe meu filho, eles irão achar o caminho certo de fazer e transmitir história através dele.”
Ana Carolina Knop
Ela vinha de uma longa caminhada, mas estava meio sem rumo, meio sem prumo. Vagava pelo mundo. Sentia já há muito tempo um oco dentro de alguma parte de si. Curioso que o vazio do oco parecia pesar mais que o próprio corpo, puxava seus ombros, suas costas, ela estava cansada. Nesse estado assim cabisbaixa foi fácil ver no chão um objeto que lhe chamou atenção. Era um tubo de cerâmica que ela pegou na mão. Vendo mais de perto percebeu que se tratava de algo como um caleidoscópio. Colocou seu olho no buraco em um dos lados do tubo. Do outro lado, vidrados compunham um vitral. As belíssimas imagens que viu no oco do caleidoscópio fizeram cócegas nas paredes do oco dentro de si. O caleidoscópio trazia uma mensagem: "leve-me de volta ao lugar a que pertenço, ou deixe-me aqui e siga em sua estrada". A beleza das imagens, as cócegas e a curiosidade fizeram com que não tivesse dúvida, levaria o caleidoscópio de volta, e apesar dele não trazer nenhuma informação de seu endereço de destino, ela de alguma forma sabia exatamente o caminho. Quando chegou, teve certeza de que era o lugar certo. As imagens a princípio abstratas que vira no caleidoscópio se clareavam agora em sua mente, eram fotografias desse lugar, em que ela já havia estado e que ela havia amado. Era um lugar fértil, de ideias, de criação, de produção. Pelas prateleiras objetos em argila que ela já conhecia se misturavam a novas criações. O lugar era absolutamente vivo. Ela lembrou de uma parte de sua construção, da reabertura do ateliê de cerâmica e da reinauguração do forno. Para sua enorme felicidade encontrou a grande regente daquilo tudo, e teve cada vez mais vontade de ficar. Conheceu um grupo de pessoas novas e uma mestra que lhe convidou a ouvir Itans e mexer no barro. Os Itans lhe eram quase que completamente novos, e fascinantes. Enquanto ouvia, recebeu um pedaço de argila, que precisava sovar pra retirar o ar. O ar que saía da argila entrava em seus pulmões, revigorando-a. Então foi preciso bater a argila, jogando-a contra a bancada. Quando a argila tocou a bancada pela primeira vez, ela tomou um grande susto. Do impacto saiu algo como uma fumaça espectral, que a cada batida ia aumentando e se revelando. Isso que se formou que ela via a seu lado era um fantasma de si, feliz de estar ali, parecia que sempre esteve ali. O vaso foi desde o início do acordelado um trabalho em conjunto entre ela de carne e osso e seu fantasma. A cada "minhoca" adicionada do acordelado, as duas trabalhavam melhor juntas, até que em certa altura no modelar da argila, os dedos da fantasma tocaram os dedos da de carne e osso. Ela sentiu de novo as cócegas nas paredes do oco dentro de si. Foram cócegas boas, ela não ligava de sentir. Na continuação do trabalho, o vaso ia tomando forma, a fantasma ia diminuindo e as cócegas aumentando, até que cessaram por completo quando o vaso estava pronto. A fantasma já não mais se via, e o oco dentro de si não mais existia. Foi preenchido com aquela parte sua que havia deixado no passado. Ela achou que havia trazido o caleidoscópio ao lugar ao qual pertencia, mas era a si mesma que trazia.
Greyce Kelly do Santos
Greyce Kelly do Santos